Três inverdades ditas sobre a língua para quem não é linguista

Antes de voltar ao post anterior (falando de configuração, tema da atividade e forma de exposição para entender como se dá a interação em ambientes sociais na Internet), preciso comentar uma notícia que saiu recentemente sobre o uso da linguagem e a adoção de um livro didático pelo MEC. Esta notícia me motiva a escrever novamente neste blog (finalmente!) e a tentar esclarecer equívocos graves sobre pensamentos a respeito do uso da língua, disseminados na mídia como sendo a maior verdade do mundo e um problema terrível para o cidadão brasileiro.
O livro mostra exemplos da fala popular e diz que esses exemplos podem ser usados, dependendo da situação em que o falante se encontre. O problema realmente grave não é o livro, mas como o momento está sendo aproveitado para que várias figuras da mídia se arvorem revoltadas, explicitando preocupações que sequer teriam uma razão mínima de existir.
Escritores da Veja, comentaristas da Globo e consultores de gramática falam inadvertidamente que o livro se baseia em uma “lingüística moderna” que incentiva às pessoas a falarem errado e diz que tudo é permitido porque não existem regras na língua. Três pontos menciono, inicialmente, para mostrar que a forma como a imprensa coloca a matéria, se não for de má-fé, é de um incentivo ingênuo à ignorância:
1)      O livro se baseia em uma “lingüística moderna” que incentiva às pessoas a falarem errado – Não é a verdade dos fatos, pois os lingüistas “modernos” ou “antigos” não aplicam a idéia de errado (ou não dizem que o erro ocorre apenas fora da gramática formal);  apenas falam das formas de adequação da linguagem que existe no mundo real. Os lingüistas não propagam como a linguagem tem que ser usada, apenas estudam os usos da língua e suas razões de ser. Esses lingüistas são cientistas que, assim como um físico que se depara com novos fenômenos do movimento, biólogos que encontram novas espécies e antropólogos que descobrem vestígios históricos para compreender a humanidade, não dizem que seus objetos de pesquisa são “errados” ou que “não existem”. Eles apenas estudam a razão de ser dos fenômenos ou vão procurar entender o discurso (da mídia, da religião, da ciência e de outras esferas)  bem como a linguagem do dia-a-dia, seja ela falada ou escrita. Eles também dão valor à fala por uma questão óbvia: o ser humano além de escrever, fala, e na maior parte do seu tempo. Além disso, na humanidade há civilizações que falam e escrevem e as que apenas falam (em um maior número, por sinal), o que indica, no mínimo, que a fala também merece a atenção de estudos.
2)      Essa lingüística na qual se baseia o livro do MEC diz que tudo é permitido – Não é verdade. Os lingüistas que conheço (são vários e das mais diferenciadas linhas) estudam dimensões e aplicações da língua e investigam suas peculiaridades ou regularidades, o seu desenvolvimento na vida do ser humano e na humanidade, as origens e o funcionamento concreto da língua por pessoas reais na fala e na escrita, e não em frases isoladas de uma gramática normativa. Portanto, são esses estudiosos os que mais têm consciência das regras empregadas nas línguas do nosso mundo. Eles apenas não impõem que as regras têm que ser aplicadas de um para outro campo, da escrita para a fala ou vice-versa. Eles constatam como as pessoas efetivamente as aplicam no mundo e não exercem poder de polícia, dizendo que uma forma de falar ou escrever precisa ser usada em detrimento de outra. Daí achar que eles dizem que tudo é permitido, vai longe.
3)      Não deveria ser estudada a língua popular ou a que se usa na Internet, dentro de sala de aula, porque essas os alunos já sabem – Novamente, não é a verdade clara, que deveria ocorrer: as pessoas na escola merecem estudar o que as ciências da linguagem têm trazido de importante para a evolução do conhecimento e não apenas aprender a obedecer regras  (na verdade, leis do certo e do errado).  Se aprendemos sobre o que os cientistas e estudiosos da física, da matemática, da biologia, da história e da geografia nos trouxeram, por que não podemos aprender sobre o que os lingüistas estão debruçados? E se eles estudam a linguagem nas sua mais diversas manifestações (da criança, na rua, o “internetês” etc), por que os que estão na escola também não podem estudar? Não vejo os lingüistas dizendo que o estudo da gramática formal deve ser proibido, mas os gramáticos, sim, querem impedir o verdadeiro acesso à compreensão do funcionamento da linguagem humana, manifestada em suas mais diferenciadas situações .
Enfim, por que o escândalo sem ao menos debater o porquê do funcionamento da língua informal? (que é uma parte de um capítulo deste livro que estão condenando – e não o livro todo) Pior, por que gerar revolta e polêmica quando se mostram apenas que as várias situações da fala geram preconceito? Talvez este livro fale um pouco de preconceito lingüístico, mas o que deveria mesmo era denunciar os preconceitos por trás dos ditos “preconceitos lingüísticos”. Afinal de contas, quando falamos “me dê o sal”, não há escândalo. Escândalo mesmo é quando essa “gente diferenciada” diz “pobrema” ou não faz as concordâncias devidas. Mas, peraí... de acordo com a gramática formal tudo isso não constitui um erro? Claro, mas a oportunidade para atacar os lingüistas e outras formas de abordar a língua, fora do padrão estabelecido como culto (formal), é melhor de ser aproveitada se for registrada em um livro aprovado pelo MEC.

1 Response to "Três inverdades ditas sobre a língua para quem não é linguista"

  1. Misflower - Flávia Peres says:
    18 de maio de 2011 às 19:02

    perfeito! concordo com vc. quando ouvi a discussão na mídia, e a forma como enviesaram o assunto, citando o soletrando como exemplo da "capacidade do povo em aprender a língua", eu disse: quaaaaaaaaac! o que é isso? eles distorceram os argumentos e nem sequer permitiram à audiência uma voz com apelos ao outro lado da questão. eu queria ouvir palavras como gênero discursivo, práticas de uso, atividade, movimento pela/na linguagem. assino embaixo, lafa.